No último domingo, dia 15, o correspondente do jornal O Estado de S.Paulo em Genebra, Jamil Chade (uma de minhas leituras obrigatórias), publicou excelente matéria sobre o mercado internacional de jogadores de futebol,
Seu artigo partiu de dados que obteve em primeira mão da FIFA e do seu TMS – Transfer Matching System (informações agora liberadas, mas somente em pequenos releases ou para os compradores dos levantamentos), mostrando o Brasil como o país com o maior número de atletas transferidos para times do exterior, seguido pela Espanha.
Chamou sua atenção o grande número de jogadores transferidos do Brasil para outros países e o baixo valor total dessas transações, especialmente quando comparou com os números referentes à Espanha e seus jogadores, bem como com o valor total das transferências em todo o mundo em 2014 (ano inteiro):
Brasil – 689 jogadores – US$ 221 milhões – média de US$ 0,32 milhão
Espanha – 600 jogadores – US$ 667 milhões – média de US$ 1,1 milhão (estimado)
Mundo – 13.090 jogadores – US$ 4,1 bilhões – média de US$ 0,31 milhão
Esses números, que vêm se repetindo há anos, embasaram a matéria – “Brasil exporta muito e ganha pouco com a venda de atletas” – que foi reforçada com a participação do Amir Somoggi, especialista em gestão esportiva, colaborador de vários veículos e já bem conhecido dos leitores desse OCE, que com frequência traz posts baseados em seus trabalhos. Amir chamou a atenção para a situação de enorme endividamento de nossos clubes, que leva-os a negociar direitos federativos de jogadores que mal e mal apresentaram algum indício de bom futebol.
Essa é uma verdade inegável, já bem conhecida e sofrida pelo torcedor brasileiro, mas eu acredito que a situação toda é mais ampla e muito mais antiga, e vem se repetindo há muito tempo, apenas com mudanças nos nomes e sedes dos participantes.
O que temos, na verdade, é o velho mercado em ação e, apesar da aparência cruel e de exceções que parecem apontar para uma situação de desequilíbrio, há uma lógica por trás desses números e movimentações. Que pode ser, sim, muito cruel, talvez até mesmo injusta (embora não pense assim), mas é a expressão de forças e movimentos que sempre impulsionaram o desenvolvimento das mais variadas atividades humanas.
Olhando um pouco o passado e a movimentação de jogadores
Até poucos anos atrás nossos grandes clubes renovavam seus elencos trazendo os promissores jogadores dos pequenos clubes brasileiros. Entre os grandes, os mais poderosos pegavam os melhores dos menos poderosos. Pagavam pouco. Se os jogadores “davam certo” seus valores de mercado subiam. Se eles fracassavam, o valor caía e o grande poderoso amargava grande prejuízo.
Desde então, o mercado mudou muito, mas sua essência continua a mesma – mercados fortes compram direitos federativos de mercados fracos.
Durante a década de 90 uma grande mudança tomou forma no mundo da bola: clubes europeus começaram a frequentar nossos bastidores e comprar os passes de nossos melhores jogadores. Era a globalização chegando com força total ao futebol.
É importante destacar que a globalização é todo um processo que passou a existir a partir de um certo grau de desenvolvimento tecnológico e como fruto, e não causa, de um brutal crescimento no número de habitantes desse planeta. O futebol é apenas uma parte disso, parte do lazer de alguns bilhões de pessoas em todo o mundo.
A globalização mudou as escalas de tudo que conhecíamos e as formas como vivíamos. E mudou o futebol. Vamos a algumas histórias.
Lembro que em 1997, Marcelinho Carioca, então grande ídolo corintiano, teve seu passe vendido para o espanhol Valencia, por um caminhãozinho de dinheiro: US$ 7 milhões. Meses depois, a carésima contratação voltava ao Brasil, para o mesmo Corinthians. No Valencia, Marcelinho marcou pouco mais de meia dúzia de gols. Fracassou. Não se adaptou. Estranhou. Teve saudades. Enfim, fracassou. E o clube espanhol amargou belo prejuízo, pouco recuperando do que gastou no pacote de transferência.
Quando foi negociado Marcelinho já era jogador formado, experiente, já tinha sido ídolo no Flamengo, antes de ser um símbolo do Corinthians. Jogou muito e jogou muito bem nos clubes das duas maiores torcidas brasileiras. Portanto, era mais que experiente, era tarimbadíssimo, era um jogador no auge de sua capacidade técnica, física e, supunha-se, emocional.
Assim mesmo, fracassou na Espanha.
Há poucos anos um jovem explodiu na zaga são-paulina de 2007: Breno. Explodiu é o verbo correto, pois com meros 17 anos assumiu titularidade incontestável na que foi a melhor zaga do futebol brasileiro nesse século XXI. No final de sua primeira temporada profissional, passando de 17 para 18 anos de idade, teve seu direito federativo negociado com o poderoso Bayern de Munique, por US$ 16 milhões. Em campo, como ficou provado no Brasileiro daquele ano, Breno era uma certeza, jamais uma aposta. Apesar disso, fracassou no Bayern, fracassou na Alemanha. Não nos gramados, mas fora deles. Com certeza, pesou a tenra idade, associada a uma formação cultural insuficiente para uma boa adaptação à vida num país estrangeiro.
E o Bayern amargou um grande prejuízo.
Ainda mais recentemente, nossos jornais reproduziram declarações fortíssimas de Mircea Lucescu, treinador do ucraniano Shakhtar Donetsk, que pagou € 25 milhões ao Atlético Mineiro pela transferência de Bernard. Um dinheirão, quase R$ 80 milhões pelo câmbio do pagamento. Apesar disso, Lucescu foi duro com Bernard, dizendo que ele era “jogador de Twitter”. Em outra entrevista, disse que ele tinha ido para a Ucrânia apenas para pegar o dinheiro do Shakhtar. Disse mais: era pouco comprometido, não se integrava, nem mesmo com outros brasileiros e não era pontual. Claro que ele joga uma fração do que jogava no Galo.
Bernard permanece no Shakhtar, mas não se pode dizer que os € 25 milhões foram bem empregados, muito pelo contrário.
Com esses exemplos quis demonstrar que mesmo jogadores já famosos pelo bom futebol, não constituem certeza de bons negócios quando contratados por times do exterior.
Morar em outro país não é fácil, especialmente para pessoas sem um bom preparo emocional e educacional. As diferenças de língua, hábitos, comidas, paisagens, climas, podem ser extremamente opressivas e levar uma pessoa a se desestruturar completamente. Para um jogador de futebol isso pode levar, simplesmente, a uma virtual incapacidade de jogar uma mínima parcela do que jogava.
Ao contratar um estrangeiro, e por estrangeiro nesse contexto temos que pensar em um jovem sul-americano ou africano (e já despontando asiáticos) chegando à Europa, o clube assume dois grandes riscos, pelo menos: o da evolução do jogador e a sua adaptação a outro país, outra vida, outro mundo, mesmo, ainda mais considerando as origens e condições de vida da maioria dos jogadores de futebol sul-americanos e africanos.
Ao lado desses exemplos de atletas já famosos, mesmo com pouca idade, que não se adaptaram às mudanças, temos centenas de casos de jogadores desconhecidos que também não se adaptam e retornam ou que nunca atingem um estágio de estrela, como aconteceu, por exemplo, com Hulk e Pepe, para citar somente dois entre muitos jogadores que eram desconhecidos do torcedor brasileiro e desenvolveram-se como atletas já na Europa.
Quando suas transferências entre clubes europeus movimentam grandes cifras, eles há muito já deixaram de ser os jovens desconhecidos que embarcaram em Cumbica ou Galeão.
Cabe aqui um outro dado importante do TMS: o Brasil não é somente o maior exportador de atletas, ele é, também, o maior importador, a ponto de a própria FIFA referir-se ao Brasil como “key player” no mercado internacional de transferências.
Desde a criação do TMS em 2010, o Brasil é o mais ativo participante no mercado de transferências, e isso inclui as duas mãos de direção, ou seja, jogadores saindo e jogadores entrando. Nesse segundo caso, temos os repatriamentos e o grande número de atletas que não “deram certo” em terras estrangeiras.
Entre janeiro de 2011 e junho de 2014, foram realizadas 5.003 transferências internacionais envolvendo clubes brasileiros.
Nesse mesmo período, 5.226 atletas brasileiros foram negociados em todo o mundo. Esse número é superior ao dobro de atletas da segunda nacionalidade com mais atletas movimentados: 2.632 argentinos.
Por outro lado... A população brasileira é, grosso modo, cinco vezes maior que a população Argentina. Causa um certo espanto quando comparamos esses números, não? O argentino é mais boleiro que o brasileiro.
Quando olhamos em detalhe as 5.003 transferências citadas, vemos que mais jogadores entraram no Brasil do que saíram: 2.692 contra 2.311. Naturalmente, a esmagadora maioria desses 2.692 que “entraram” no Brasil vindo do exterior (53% de clubes europeus), é formada pelos jogadores que não se adaptaram ou, simplesmente, não se revelaram bons o suficiente para permanecer no mercado europeu.
Os casos de sucesso – exceções e não regra
No outro lado dessa moeda, temos dois grandes exemplos do que seria algo próximo do ideal: Neymar e Lucas. Apesar do sucesso rápido em suas carreiras, Santos e São Paulo conseguiram segura-los por mais tempo, o que levou a transações financeiras de maior vulto, um indo para o Barcelona e o outro para o Paris Saint-Germain.
Neymar é Neymar, está melhorando dia a dia e não demora muito será o melhor do mundo. De sua transferência, polêmica e altamente lesiva ao Santos, já falei muito nesse OCE e vou passar sem o detalhamento, mas uma coisa é certa: o Barça fez um grande negócio. O Santos e a DIS, parte legal e legítima na transferência, muito investiram em sua permanência, mas pouco receberam do bolo total envolvido: R$ 80 milhões. Fora os jogos “amistosos” entre Santos e Barça e fora, naturalmente, os valores negociados diretamente com representantes do jogador.
Lucas demorou um pouco para “pegar” no PSG, mas agora está indo bem. Os absurdos € 42 milhões pagos ao São Paulo por sua transferência irão acabar se justificando. Reitero: foi um valor absurdo, bem acima do que o próprio mercado apontava como razoável para o atleta, naquele momento. Hoje, ao lado de Neymar e Marquinhos, Lucas está entre os 12 jogadores mais valiosos e mais promissores das Big Leagues (ou Top 5 – Premier, Bundesliga, La Liga, Serie A e Ligue 1).
Em seu artigo, Jamil Chade lembra o exemplo de Thiago Silva, negociado pelo Fluminense com o Milan por € 10 milhões e, poucos anos depois, indo para o PSG por € 41 milhões. Uma grande valorização, sem dúvida. Como ele, outros jogadores evoluíram muito na Europa, como David Luiz e William, entre muitos. Esses muitos, porém, representam pouco em relação ao total de jogadores que estão na Europa ou que para lá vão temporada após temporada. São as exceções – 10, 20, 30, quando muito 50 jogadores de alto nível num universo de milhares.
Na normalidade de mercado e o que falta mesmo é bom futebol
Voltando ao iníco do post, além da Espanha, também a Inglaterra, Portugal, França e Itália estão à frente do Brasil nos valores de atletas negociados para outros países. O diferencial básico, número um, que explica as maiores médias de valores, está no fato simples de que se tratam de jogadores nativos dos diversos países europeus. Já conhecem e jogam sob a neve e o frio extremo, seus hábitos e valores culturais são relativamente comuns, sobretudo nessa fase histórica de integração entre economias e, inevitavelmente, povos e culturas. O risco “adaptação” é reduzido, assim como é maior o conhecimento das qualidades de cada atleta.
Em sua matéria, Jamil credita o baixo valor dos jogadores brasileiros à bagunça e à pobreza crônica de nossos clubes, incapazes de segurar os jogadores por aqui mesmo e com ele concordou o Amir. Na minha visão, porém, considerando esses pontos que apresentei, os valores não são baixos. Se tivesse que qualifica-los, diria que são valores normais. São normais em relação às expectativas e riscos que representam.
Quanto às estrelas, bem, no caso delas é tudo diferente e o céu pode ser o limite.
Aqui, sim, a pobreza de nossos clubes é fator impactante. Mas não único, infelizmente.
A garotada hoje tem noção muito clara das diferenças e da qualidade de vida e trabalho entre o Brasil e países desenvolvidos. Sonham não apenas em ganhar muito dinheiro, mas também em viver bem.
Sonham em jogar torneios importantes, charmosos e recheados de bons jogos, bons jogadores, bom futebol.
O mesmo botinudo que esfola canelas adversárias por mero comodismo, na Europa muda. Deixa de chutar os adversários e se concentra na bola. Joga, ao invés de brigar.
Os jovens jogadores veem isso desde cedo.
Humanamente, aqui se comportam de um jeito e lá irão se comportar de outro.
Adaptam-se ao novo ambiente por força do instinto e com a ajuda da educação. No Arena Sportv de ontem, sexta-feira, Belletti falou um pouco a respeito, de como seus colegas do Chelsea lhe deram dicas importantes de comportamento em relação à arbitragem, por exemplo. Só isso já renderia meia dúzia de posts enormes e um congresso inteiro com discussões por vários dias.
O jovem brasileiro quer ir para a Europa, independentemente da vontade do clube. Isso foi o que disse Kaká para o então presidente são-paulino, Marcelo Portugal Gouvêa. Por mais dinheiro que o São Paulo lhe oferecesse, ele queria jogar na Europa, especificamente num grande europeu.
Pelo conjunto da obra, digamos, e não somente pela grana.
Com diferenças de tonalidade e não de conteúdo, a situação é semelhante na Argentina, Uruguai, Colômbia, Peru e até no Chile, o mais desenvolvido dos países sul-americanos.
O dinheiro movimentado com as transferências de jogadores é muito elevado e chega mesmo a impactar as economias de países menores, que estão longe de terem o tamanho do Brasil e sua economia.
Levantamento global feito pela consultoria PwC - Price Waterhouse Coopers – e citado por Jamil Chade, apontou que já em 2012 os clubes europeus investiram US$ 4 bilhões em reforços, mas somente 20% desse montante teve como destino a América do Sul. Menos de um bilhão de dólares, mas valor razoável para o tamanho da economia do continente.
Tudo que falei em relação ao jogador brasileiro se aplica aos africanos e a uma boa parte dos sul-americanos. É reconhecido que argentinos e uruguaios, principalmente, têm menor proporção de jogadores que não se adaptam, mas esse ponto, aparentemente, não chega a influir no valor médio das negociações.
Esses são os pontos que queria demonstrar: nossos jogadores não são baratos, eles estão, simplesmente, na média do mercado. Os poucos, proporcionalmente, que se destacam, entram em categorias à parte, com outras referências de mercado e valor.
A pobreza e endividamento de nossos clubes forçam as vendas prematuras, é verdade, mas a necessidade de fazer dinheiro do clube se casa à perfeição com o desejo e sonho de todo jogador brasileiro (creio que com uma ou outra exceção), principalmente os jovens e muito jovens, de jogar na Europa.
Para eles terem a vontade de jogar aqui mesmo, nessa ora doce, ora terrível Terra de Vera Cruz, precisamos oferecer muito mais que dinheiro.
Precisamos oferecer bom futebol e tudo que o cerca.
Fonte: Blog Olhar Crônico Esportivo